INICIATIVA NOTA 10: O MORRO E AS MALAS

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Se os leitores não visitam as bibliotecas, que tal levar os livros até a casa deles?

Foto: Biblioteca ComunitáriaEncontrar um morador do Morro da Cruz, em Porto Alegre, com destino ao aeroporto e à rodoviária não é, definitivamente, algo comum. A região é um dos pontos carentes da capital gaúcha, o que faz com que boa parte de seus habitantes nunca viaje - e conheça apenas as redondezas e, ainda por cima, a pé.

Apesar disso, ver pessoas puxando malas para cima e para baixo é corriqueiro. Em vez de roupas, calçados e outros objetos essenciais para viajantes, elas carregam livros, levados de casa em casa pelos funcionários da biblioteca comunitária Ilê Ará. "Visitar as residências foi o melhor tipo de comunicação para conquistar leitores e divulgar os eventos que realizamos como os cafés literários. Dá muito mais resultado do que distribuir panfletos", explica Maurício Alves, 22 anos, funcionário da biblioteca.

A ideia faz todo o sentido: além de os moradores não terem o hábito da leitura, a geografia da área não facilita. Para chegar à biblioteca Ilê Ará, expressão da língua africana iorubá que significa "casa do povo", é preciso fôlego. Ela fica no ponto mais alto do Morro da Cruz - que tem 120 metros de altura - e a subida é bastante íngreme. Debaixo do sol escaldante do meio-dia, percorrer o caminho desconexo, cheio de becos e ruas estreitas, é um grande desafio, que os funcionários tiram de letra - afinal, nasceram e cresceram no local.

No início, eles iam até a casa de conhecidos para facilitar a abordagem. Com o passar do tempo, ampliaram a visitação para outros moradores. "O segredo é fazer mais que uma apresentação do trabalho que realizamos. É conhecer as pessoas e não ter vergonha de conversar sobre a vida, perguntar o que gostam de fazer. Um bom papo cativa e abre as portas", fala Paulo Centurion, 22 anos, companheiro de Alves nas andanças pelo morro. Ele conta que até quem diz que não é muito fã de leitura acaba ficando com alguns livros. "Por isso, é importante rechear as malas com muita variedade e não se deixar vencer pelo primeiro 'não'", diz o rapaz. Com livros de receitas culinárias, ele já conquistou várias donas de casa, que agora também saboreiam as histórias escritas por autores consagrados, como Jorge Amado.

E quando a visita não rende empréstimo de jeito algum? Por que nada agrada? "A gente anota o pedido ou volta outro dia com novas ofertas."

Hoje, muitos moradores sobem até o alto do morro para escolher o que querem ler, movimentando 1,2 mil empréstimos por mês. Cinco malas circulam na área, com parte dos 5 mil títulos do acervo. Às vezes, inclusive, elas saem da biblioteca carregadas por gente miúda, como Gabriela Souza da Rosa, 11 anos.

Durante minha estada na cidade, lá estava ela, montando por conta própria uma das bagagens para sua família. "Já sei que meus pais e minha irmã gostam mais de romances, poesia, contos de fada e gibis. Então, venho aqui, monto uma mala e levo para casa", diz.

A garota é filha de uma auxiliar de limpeza e de um varredor de rua. Por passarem o dia todo fora, os pais dela não conseguem ir à biblioteca. Olhando as estantes, Gabriela seleciona alguns volumes e vai organizando a mala. Enquanto alcanço uma das prateleiras mais altas para ajudá-la, tento - ainda que mentalmente - me livrar do clichê "ler é viajar sem sair do lugar". Mas é inevitável. Na Ilê Ará, essa máxima é levada à risca.

FONTE: http://educarparacrescer.abril.com.br
TEXTO: Beatriz Vichessi


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